Quando se viraram, a Sombra, perfeita mistura de trevas e ódio, acabava
de chegar à margem imediatamente à frente. Estava em pé, sobre as pernas
traseiras, “encarando-os” postada a milímetros do limiar da água.
Deu um passo,
mergulhando o pé direito na água. A agitação e o vapor emitidos foram imensos.
Assim como acontecia com seu sentimento de ódio, foi possível perceber uma
grande dor emanar da criatura, embora nenhum som tenha sido emitido. Apesar do
sofrimento, o ódio ainda parecia dominar sua determinação, assim, um segundo
passo foi dado, mergulhando a perna esquerda até o calcanhar. Uma massa ainda
maior de vapor foi lançada, quase impossibilitando a visão daquele corpo. Um
terceiro passo foi dado, mas foi possível perceber o ódio e a determinação
sendo gradualmente subjugados pela dor. A criatura permaneceu imóvel ainda por
alguns momentos, parecendo lutar internamente contra aquela experiência
lacerante. Derrotada, recuou e lançou o peso sobre os vigorosos braços,
suspendendo as pernas para que não tocassem nem a rocha da estrada. Virou-se em
silêncio e desapareceu na borda da muralha. Em seguida desapareceram também as
projeções de angústia, dor e ódio, sugerindo o distanciamento da Sombra. Um
grande alívio tomou conta dos viajantes, mas não ousaram sair da água.
Cansados, avançaram até um ponto no qual fosse possível sentar no fundo do
espelho, a água em seus queixos.
- Aquilo quer nos matar!
- E o que é aquilo?
- Ódio!
Permaneceram ali, perdidos em seus pensamentos por quase duas horas. A
aproximação do meio dia fez Marcus pensar no risco de abrigarem-se no patamar
além do parapeito. Estava aterrorizado! Cabeça dividida entre a iminência do
Vendaval e a possibilidade da Sombra ainda estar à espreita.
- Precisamos fazer alguma coisa!
- Não sei, Rapaz! Não sei mesmo! A coisa tá preta!
- Em todos os sentidos possíveis! Já viu o Sol?
- É isso que me preocupa!
Marcus se levantou, pronto para caminhar rumo ao
parapeito. Valdomiro o segurou pelo braço, mas não disse nada. Ciente da
gravidade da situação, acabou soltando o companheiro. Valdomiro caminhou ao
lado de Marcus, segurando a lança firmemente com as duas mãos, apontando para o
abismo, pronto para golpear qualquer coisa que viesse dali. Marcus não censurou
o amigo. Imaginava que novos golpes naquela coisa serviriam apenas para
enfurecê-la ainda mais ou, pior, multiplicá-la, como o ocorrido com as aranhas,
mas talvez lhes garantisse a oportunidade de voltar para a água.
Continua em #Vazio - A Fome das Sombras (25)
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