Não era difícil encontrar o
caminho. Havia uma trilha invisível no ar, um feixe de tristeza e desolação. Um
curso no qual o canto dos pássaros era progressivamente mais baixo, até não ser
mais ouvido. As árvores, com galhos espaçados e folhas vibrantes convertiam-se em
emaranhados doentios; folhagens escuras transformavam os raios solares em
lembranças distantes. O menino, porém, seguia. De algum modo todos os temores
infantis em relação ao desconhecido que tinha adiante eram ofuscados por um
medo ancestral de voltar atrás. Não podia recuar. Sobretudo, não podia falhar.
Deve ter caminhado menos de
uma hora, mas a densidade da mata tornou-se tão opressiva que sentia-se no crepúsculo
de um dia de inverno. Chegou num ponto que poderia ser chamado “clareira”, não
fosse a persistência do telhado escuro, mesmo com o afastamento das colunas de
madeira. No centro da “escureira” havia os restos de uma choupana. Quase não se
podia mais discernir a existência da mesma; restava o batente e algumas tábuas.
A estrutura havia sido abraçada por uma Árvore. As raízes serpentearam
contornando as velhas paredes. Com o tempo se entrelaçaram, expandiram, enrijeceram,
até que substituíram a estrutura original. Raízes também pendiam do alto do
batente, tentando encerrar o casebre nas trevas do interior da árvore, mas o “hospedeiro”
- “Provavelmente o Homem do Inferno”, pensava o menino – as afastava,
garantindo o acesso. A mistura de tristeza e ódio se condensava no ar,
conferindo-lhe um “Quê” de viscosidade. O menino avançou até um passo antes da
porta:
- Olá! Tem alguém aí?
Um urro de dor nasceu da
escuridão lá dentro. Ódio e medo escorriam naquele timbre. Era latente o desejo
de espantar, afastar, e isto ficou ainda mais claro com o silêncio que
prosseguiu. Perplexidade, talvez. Pouco depois uma face pálida, purulenta,
contornada por emaranhados cabelos brancos, surgiu das trevas, emitindo um novo
urro. Olhos vermelhos brilhavam como chamas. Abaixo daquela figura
aterrorizante pendia uma mão segurando um caco de cerâmica com tanta força que
se cortara, gotejando intensamente. Com o susto, o menino deu um passo para
trás, tropeçou em uma raiz exposta e caiu no chão. O “Homem do Inferno” deu um
passo em sua direção, apresentando na penumbra o corpo que escondia nas sobras.
Era extremamente pálido e magro; arqueado como se suportasse um grande peso, o
que tornava ainda mais baixa a figura que não teria grande estatura nem mesmo
se ficasse ereta. Estava completamente nu. Exalava um forte cheiro de
putrefação, como se já tivesse morrido há anos, mas o gosto de ódio e
sofrimento no ar, em disputa com aquele fedor o tornava quase agradável. Um
novo passo o deixou quase sobre o menino, ainda no chão; a mão levantada
preparava-se para atacá-lo com o caco. Sangue escorria até a ponta, pingando
sobre o braço esquerdo do pequeno. Ele levantou a mão, num gesto muito mais de
saudação que de auto-defesa:
- Por favor, me perdoe! - Disse
em tom muito baixo
A criatura parecia perplexa.
Recuou. “Por quê?”, emanavam seus olhos, levemente menos febris. O menino se
levantou. O outro não ofereceu resistência. Pareceu não se assustar nem se
enfurecer. Apenas assistiu.
- Por favor, me perdoe se
minha voz o feriu. Por favor, me perdoe se me atrasei.
O caco se partiu ao cair. A
criatura olhava o contraste entre o branco da palma da mão e o vermelho intenso
do sangue. Parecia em estado de choque, como se percebesse pela primeira vez o
próprio estado. Um ruído baixo, ainda um tipo de urro, um tom grave e arranhado,
foi emitido na direção do menino. Se ouvido repetidas vezes e com muita atenção
seria possível perceber. Dizia:
- Por quê?
Havia algo no olhar do
menino que o movia no tempo e no espaço. Conectava-o ao menino que fora.
Reconhecia naquele olhar algo daquele passado. Sentia-se reencontrando algo ou alguém.
- Perdoe-me por não estar
lá, por não te proteger, por não enxugar suas lágrimas.
Parecia um comando. Lágrimas
vieram aos olhos, que não eram mais vermelhos, quase simultaneamente ao dizer
da palavra. Um homem escondido no interior da criatura perguntou com voz
embargada, mas nítida:
- Por quê?
- Apenas diga que me perdoa.
A criatura chorou com mais
força. As lágrimas eram cristalinas como qualquer lágrima, incolores e
inodoras, mas não insípidas. Frustração, remorso, apego e sal formavam seu
sabor. Não estava mais curvado, mas ainda estava nu e fedia. Com braços
afastados do corpo avançou. O menino compreendeu o gesto e o abraçou. Chorando
copiosamente, questionou com voz revigorada:
- Por quê?
- Eu não sou seu pai, nem
seu filho. Não sou um grande amigo, nem um estranho. Eu sou a vida de Kadar,
assim como você é a vida de Kadar. Por que eles se foram? Eu não sei! Por que
eu vim? Eu não sei! O que há pela frente? Pessoas precisando descobrir que elas
também são a vida de Kadar.
O “Porquê” estava
estabelecido. O homem que não era mais do inferno olhou seu covil pela última
vez. Foi ao rio e se banhou. Olhou para o menino. Procurava abrigo e orientação.
O olhar do menino dizia “Não me siga!”.
- A Vida de Kadar é plena!
Quando a chama de uma vela acesa toca a ponta de uma vela apagada, aquela não é
mais necessária. Siga, leve a luz e transforme outros infernos em “Vida”.
Nunca mais se viram. Não era
preciso. Estiveram sempre juntos, conectados pela vida que levavam, pela vida
que criaram. O “Homem do Inferno” foi resumido ao que deveria sempre ter sido,
uma lenda para se contar ao redor da fogueira. Depois da fogueira apagada e das
cinzas enterradas, o simpático ancião se levantava, agradecia a companhia e
seguia sua jornada:
- Kiria, qual o seu nome? ¹
- Eu sou Itzui! ²
Notas:
¹ “Kiria” = “Velho Pai”.
Termo empregado em respeito aos homens mais velhos.
² “Itzui” = “Vela”
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