sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Conto - O Sábio e o Homem do Inferno – Parte 2

Não era difícil encontrar o caminho. Havia uma trilha invisível no ar, um feixe de tristeza e desolação. Um curso no qual o canto dos pássaros era progressivamente mais baixo, até não ser mais ouvido. As árvores, com galhos espaçados e folhas vibrantes convertiam-se em emaranhados doentios; folhagens escuras transformavam os raios solares em lembranças distantes. O menino, porém, seguia. De algum modo todos os temores infantis em relação ao desconhecido que tinha adiante eram ofuscados por um medo ancestral de voltar atrás. Não podia recuar. Sobretudo, não podia falhar.

Deve ter caminhado menos de uma hora, mas a densidade da mata tornou-se tão opressiva que sentia-se no crepúsculo de um dia de inverno. Chegou num ponto que poderia ser chamado “clareira”, não fosse a persistência do telhado escuro, mesmo com o afastamento das colunas de madeira. No centro da “escureira” havia os restos de uma choupana. Quase não se podia mais discernir a existência da mesma; restava o batente e algumas tábuas. A estrutura havia sido abraçada por uma Árvore. As raízes serpentearam contornando as velhas paredes. Com o tempo se entrelaçaram, expandiram, enrijeceram, até que substituíram a estrutura original. Raízes também pendiam do alto do batente, tentando encerrar o casebre nas trevas do interior da árvore, mas o “hospedeiro” - “Provavelmente o Homem do Inferno”, pensava o menino – as afastava, garantindo o acesso. A mistura de tristeza e ódio se condensava no ar, conferindo-lhe um “Quê” de viscosidade. O menino avançou até um passo antes da porta:
- Olá! Tem alguém aí?
Um urro de dor nasceu da escuridão lá dentro. Ódio e medo escorriam naquele timbre. Era latente o desejo de espantar, afastar, e isto ficou ainda mais claro com o silêncio que prosseguiu. Perplexidade, talvez. Pouco depois uma face pálida, purulenta, contornada por emaranhados cabelos brancos, surgiu das trevas, emitindo um novo urro. Olhos vermelhos brilhavam como chamas. Abaixo daquela figura aterrorizante pendia uma mão segurando um caco de cerâmica com tanta força que se cortara, gotejando intensamente. Com o susto, o menino deu um passo para trás, tropeçou em uma raiz exposta e caiu no chão. O “Homem do Inferno” deu um passo em sua direção, apresentando na penumbra o corpo que escondia nas sobras. Era extremamente pálido e magro; arqueado como se suportasse um grande peso, o que tornava ainda mais baixa a figura que não teria grande estatura nem mesmo se ficasse ereta. Estava completamente nu. Exalava um forte cheiro de putrefação, como se já tivesse morrido há anos, mas o gosto de ódio e sofrimento no ar, em disputa com aquele fedor o tornava quase agradável. Um novo passo o deixou quase sobre o menino, ainda no chão; a mão levantada preparava-se para atacá-lo com o caco. Sangue escorria até a ponta, pingando sobre o braço esquerdo do pequeno. Ele levantou a mão, num gesto muito mais de saudação que de auto-defesa:
- Por favor, me perdoe! - Disse em tom muito baixo
A criatura parecia perplexa. Recuou. “Por quê?”, emanavam seus olhos, levemente menos febris. O menino se levantou. O outro não ofereceu resistência. Pareceu não se assustar nem se enfurecer. Apenas assistiu.
- Por favor, me perdoe se minha voz o feriu. Por favor, me perdoe se me atrasei.
O caco se partiu ao cair. A criatura olhava o contraste entre o branco da palma da mão e o vermelho intenso do sangue. Parecia em estado de choque, como se percebesse pela primeira vez o próprio estado. Um ruído baixo, ainda um tipo de urro, um tom grave e arranhado, foi emitido na direção do menino. Se ouvido repetidas vezes e com muita atenção seria possível perceber. Dizia:
- Por quê?
Havia algo no olhar do menino que o movia no tempo e no espaço. Conectava-o ao menino que fora. Reconhecia naquele olhar algo daquele passado. Sentia-se reencontrando algo ou alguém.
- Perdoe-me por não estar lá, por não te proteger, por não enxugar suas lágrimas.
Parecia um comando. Lágrimas vieram aos olhos, que não eram mais vermelhos, quase simultaneamente ao dizer da palavra. Um homem escondido no interior da criatura perguntou com voz embargada, mas nítida:
- Por quê?
- Apenas diga que me perdoa.
A criatura chorou com mais força. As lágrimas eram cristalinas como qualquer lágrima, incolores e inodoras, mas não insípidas. Frustração, remorso, apego e sal formavam seu sabor. Não estava mais curvado, mas ainda estava nu e fedia. Com braços afastados do corpo avançou. O menino compreendeu o gesto e o abraçou. Chorando copiosamente, questionou com voz revigorada:
- Por quê?
- Eu não sou seu pai, nem seu filho. Não sou um grande amigo, nem um estranho. Eu sou a vida de Kadar, assim como você é a vida de Kadar. Por que eles se foram? Eu não sei! Por que eu vim? Eu não sei! O que há pela frente? Pessoas precisando descobrir que elas também são a vida de Kadar.
O “Porquê” estava estabelecido. O homem que não era mais do inferno olhou seu covil pela última vez. Foi ao rio e se banhou. Olhou para o menino. Procurava abrigo e orientação. O olhar do menino dizia “Não me siga!”.
- A Vida de Kadar é plena! Quando a chama de uma vela acesa toca a ponta de uma vela apagada, aquela não é mais necessária. Siga, leve a luz e transforme outros infernos em “Vida”.
Nunca mais se viram. Não era preciso. Estiveram sempre juntos, conectados pela vida que levavam, pela vida que criaram. O “Homem do Inferno” foi resumido ao que deveria sempre ter sido, uma lenda para se contar ao redor da fogueira. Depois da fogueira apagada e das cinzas enterradas, o simpático ancião se levantava, agradecia a companhia e seguia sua jornada:
- Kiria, qual o seu nome? ¹
- Eu sou Itzui! ²
Notas:
¹ “Kiria” = “Velho Pai”. Termo empregado em respeito aos homens mais velhos.

² “Itzui” = “Vela”

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