O soldado ficou petrificado.
Percebeu que acabava de participar de um duelo no qual havia perdido
vergonhosamente. Como se um raio o atravessasse, a imensa compreensão atingida a
partir das palavras do Sábio o sufocava. A clareza foi tamanha que quase
atingiu a dimensão física; mais um pouco e lhe teria cegado. O líder saiu do
caminho. Não houve comando, ainda assim os outros cinco, preenchidos de compreensão
equivalente à do primeiro, relaxaram e recuaram. O Sábio avançou. Naquela
altura já era grande o volume de observadores tornando impossível uma entrada
discreta.
Pelas tortuosas e estreitas
ruas de Navarjari caminhava um indivíduo. Mas não era um único ponto, pois era
seguido e precedido pela multidão que só fazia aumentar. Também não se resumia
à massa humana que formavam, pois as ondas de comentários anunciando a chegada
do Sábio percorreram toda a cidade com velocidade incomensurável. O Sábio
estava em toda a parte. Não era diferente no “Velho Porto”, o nome dado ao
antigo ancoradouro fluvial instalado no ponto mais setentrional do Tiró antes
das quedas. O “Velho Porto” estava desativado há gerações, mas era conservado zelosamente
em memória à fundação da cidade. Ali residia Gaki, líder 4 da guarda
de Navarjari. “Gaki”, o nome escolhido por seus pais por significar “Belo” não
era o mais adequado. O homem extremamente obeso, frequentemente embriagado, de mãos
sempre ensebadas pelo ininterrupto devorar de toda a sorte carnes e que jamais
dormia com menos de duas mulheres, era conhecido como “Hasdj” 5. Esta
referência, é claro, jamais era dita em voz alta ou em sua presença. O homem se
levantou da cama na qual repousavam três mulheres nuas dividindo espaço com
ossos lambidos e coxas de frango. Cobriu-se com uma túnica e correu até a porta
abanando as moscas. O forte cheiro que saia da casa era uma mistura de comida
fresca assada, comida em decomposição, álcool e sexo, ainda assim não
surpreendeu o guarda que batia freneticamente na porta, assim como não
surpreenderia nenhum morador da cidade, afinal, todos conheciam o Hasdj e seu
modo de viver.
- O que foi? Apresente logo
um bom motivo para tanto desespero ou será alimento do Tiró antes do meu
próprio almoço.
- Me perdoe o incômodo,
senhor! Tive que vir alertá-lo. Ele está aqui.
Não foi preciso dizer mais
nada; Gaki apanhou sua lança e seguiu o guarda até o ponto para o qual julgavam
que o Sábio se dirigia. De fato encontrou-o na praça central da cidade, cercado
por uma multidão que, ansiosa, aguardava o início do discurso. Ele, no entanto,
nada dizia. Parecia esperar alguém e como se percebesse a aproximação de Gaki (a
multidão impossibilitava que visse diretamente), se levantou. O homem era gordo,
porém, muito alto e forte, avançou pela multidão como uma avalanche arrastando
árvores. Os que não foram derrubados rapidamente saltaram para fora do caminho
até que um largo corredor se formou entre ele e o Sábio. Quinze metros os
separavam. Gaki, que era famoso por ser capaz de atingir com precisão um ponto a
até 100 metros de distância, não tinha indo até a praça para interrogar o
visitante, muito menos para ouvir seus ensinamentos. Disparou sem hesitar. A
lança cruzou o ar e o mundo pareceu parar durante os milésimos de segundo
necessários até ela vencer aquela distância. O Sábio não se esquivou, ainda
assim, a lendária precisão de Gaki falhou. Ódio escorria pelo seu rosto. A
lança com a ponta cravada ao lado do pé esquerdo do intacto alvo vibrava com
vigor.
- Por que me ataca, se não
lhe fiz mal algum? Não vim para ter contigo, Hasdj. Vim para falar com o “Demésta”6 e você não é
Demésta.
Ouvir o outro referir-se a
ele como “Hasdj” foi como ter a alma inteira rasgada; Gaki sentiu-se como se
fosse o próprio Demésta, pois não era possível conter o imenso desejo de calar
a boca que pela primeira vez pronunciava em público aquilo que todos pensavam
em seu íntimo. Gaki deseja a satisfação a todo o custo, mas não era mal. No
instante seguinte ao ódio incitado pela pronuncia da palavra “Hasdj” a
perplexidade causada pelo “… e você não é Demésta” tomou conta. A montanha
caminhou até estar logo em frente ao Sábio, embora “logo acima” fosse o termo
mais adequado. Ele arrancou a lança do chão e a partiu ao meio. O Sábio sabia
que em Navarjari a lança era símbolo da vida militar. Perder a lança era perder
a honra. Gaki estava renunciando ao seu posto. O Sábio avançou, colocando-se
entre o ex-líder da guarda da cidade e a multidão.
- Hasdj não existe mais;
também Gaki há muito tempo deixou estas terras. Este é “Oteruihá no m’itzui” 7,
pois com muito pouco atingiu a ampla compreensão.
Oteruihá no m’itzui – ou apenas
Oteruihá, como ficou conhecido – nunca mais saiu do lado do Sábio, tornando-se
seu discípulo e o maior propagador de seu pensamento após sua morte. A
reputação como o maior exemplo de “Temperança” que já existiu tornou-se
lendária em toda Kadar.
Notas:
4 “Líder” era o equivalente
local de “General”; Este termo, porém, só era admitido quando aplicado aos
líderes do exército imperial.
5 “Hasdj” = “Fome” ou “Desejo”.
O termo também era empregado para nomear os “espíritos famintos”, criaturas
mitológicas que se alimentavam de tudo, vivo ou morto, e nunca estavam
satisfeitas.
6 “Dem” = “Ira”; Demésta
refere-se àquele consumido pela ira e/ou pela maldade
7 “Oteruihá no m’itzui” é uma
ditado popular que significava “basta uma vela para iniciar o imenso incêndio”
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