sexta-feira, 20 de setembro de 2013

O Sábio e o Hasdj – Parte 2

O soldado ficou petrificado. Percebeu que acabava de participar de um duelo no qual havia perdido vergonhosamente. Como se um raio o atravessasse, a imensa compreensão atingida a partir das palavras do Sábio o sufocava. A clareza foi tamanha que quase atingiu a dimensão física; mais um pouco e lhe teria cegado. O líder saiu do caminho. Não houve comando, ainda assim os outros cinco, preenchidos de compreensão equivalente à do primeiro, relaxaram e recuaram. O Sábio avançou. Naquela altura já era grande o volume de observadores tornando impossível uma entrada discreta.

Pelas tortuosas e estreitas ruas de Navarjari caminhava um indivíduo. Mas não era um único ponto, pois era seguido e precedido pela multidão que só fazia aumentar. Também não se resumia à massa humana que formavam, pois as ondas de comentários anunciando a chegada do Sábio percorreram toda a cidade com velocidade incomensurável. O Sábio estava em toda a parte. Não era diferente no “Velho Porto”, o nome dado ao antigo ancoradouro fluvial instalado no ponto mais setentrional do Tiró antes das quedas. O “Velho Porto” estava desativado há gerações, mas era conservado zelosamente em memória à fundação da cidade. Ali residia Gaki, líder 4 da guarda de Navarjari. “Gaki”, o nome escolhido por seus pais por significar “Belo” não era o mais adequado. O homem extremamente obeso, frequentemente embriagado, de mãos sempre ensebadas pelo ininterrupto devorar de toda a sorte carnes e que jamais dormia com menos de duas mulheres, era conhecido como “Hasdj” 5. Esta referência, é claro, jamais era dita em voz alta ou em sua presença. O homem se levantou da cama na qual repousavam três mulheres nuas dividindo espaço com ossos lambidos e coxas de frango. Cobriu-se com uma túnica e correu até a porta abanando as moscas. O forte cheiro que saia da casa era uma mistura de comida fresca assada, comida em decomposição, álcool e sexo, ainda assim não surpreendeu o guarda que batia freneticamente na porta, assim como não surpreenderia nenhum morador da cidade, afinal, todos conheciam o Hasdj e seu modo de viver.
- O que foi? Apresente logo um bom motivo para tanto desespero ou será alimento do Tiró antes do meu próprio almoço.
- Me perdoe o incômodo, senhor! Tive que vir alertá-lo. Ele está aqui.
Não foi preciso dizer mais nada; Gaki apanhou sua lança e seguiu o guarda até o ponto para o qual julgavam que o Sábio se dirigia. De fato encontrou-o na praça central da cidade, cercado por uma multidão que, ansiosa, aguardava o início do discurso. Ele, no entanto, nada dizia. Parecia esperar alguém e como se percebesse a aproximação de Gaki (a multidão impossibilitava que visse diretamente), se levantou. O homem era gordo, porém, muito alto e forte, avançou pela multidão como uma avalanche arrastando árvores. Os que não foram derrubados rapidamente saltaram para fora do caminho até que um largo corredor se formou entre ele e o Sábio. Quinze metros os separavam. Gaki, que era famoso por ser capaz de atingir com precisão um ponto a até 100 metros de distância, não tinha indo até a praça para interrogar o visitante, muito menos para ouvir seus ensinamentos. Disparou sem hesitar. A lança cruzou o ar e o mundo pareceu parar durante os milésimos de segundo necessários até ela vencer aquela distância. O Sábio não se esquivou, ainda assim, a lendária precisão de Gaki falhou. Ódio escorria pelo seu rosto. A lança com a ponta cravada ao lado do pé esquerdo do intacto alvo vibrava com vigor.
- Por que me ataca, se não lhe fiz mal algum? Não vim para ter contigo, Hasdj. Vim para falar com o “Demésta”6 e você não é Demésta.
Ouvir o outro referir-se a ele como “Hasdj” foi como ter a alma inteira rasgada; Gaki sentiu-se como se fosse o próprio Demésta, pois não era possível conter o imenso desejo de calar a boca que pela primeira vez pronunciava em público aquilo que todos pensavam em seu íntimo. Gaki deseja a satisfação a todo o custo, mas não era mal. No instante seguinte ao ódio incitado pela pronuncia da palavra “Hasdj” a perplexidade causada pelo “… e você não é Demésta” tomou conta. A montanha caminhou até estar logo em frente ao Sábio, embora “logo acima” fosse o termo mais adequado. Ele arrancou a lança do chão e a partiu ao meio. O Sábio sabia que em Navarjari a lança era símbolo da vida militar. Perder a lança era perder a honra. Gaki estava renunciando ao seu posto. O Sábio avançou, colocando-se entre o ex-líder da guarda da cidade e a multidão.
- Hasdj não existe mais; também Gaki há muito tempo deixou estas terras. Este é “Oteruihá no m’itzui” 7, pois com muito pouco atingiu a ampla compreensão.
Oteruihá no m’itzui – ou apenas Oteruihá, como ficou conhecido – nunca mais saiu do lado do Sábio, tornando-se seu discípulo e o maior propagador de seu pensamento após sua morte. A reputação como o maior exemplo de “Temperança” que já existiu tornou-se lendária em toda Kadar.
Notas:
4 “Líder” era o equivalente local de “General”; Este termo, porém, só era admitido quando aplicado aos líderes do exército imperial.
5 “Hasdj” = “Fome” ou “Desejo”. O termo também era empregado para nomear os “espíritos famintos”, criaturas mitológicas que se alimentavam de tudo, vivo ou morto, e nunca estavam satisfeitas.
6 “Dem” = “Ira”; Demésta refere-se àquele consumido pela ira e/ou pela maldade

7 “Oteruihá no m’itzui” é uma ditado popular que significava “basta uma vela para iniciar o imenso incêndio”

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