quinta-feira, 12 de setembro de 2013

O Sábio e o Hasdj

Muito tempo atrás, em uma época em que a informação não voava pelo ar e não saltava de cubos e tabuas de luz, valorizava-se a sabedoria, a qual gotejava lentamente de um espírito para outro em uma mágica relação na qual um vaso meio cheio, ao verter seu conteúdo sobre um vazio, concluía o processo pleno, ao lado doutro vaso pleno. Naquele “quando” existiu um “onde”, um vilarejo simples e pequeno, no qual floresceu um grande espírito. “O Sábio” era como o chamavam.

Daquele vilarejo o Sábio ganhou o mundo, embrenhado em uma jornada física e espiritual, caminhando e compartilhando vida, aprendendo, preenchendo espíritos enquanto aprimorava o seu. Assim, caminhando, viajando, dialogando, chegou até a imponente cidade de Navarjari. A cidade, incrustada na montanha – um paredão que impossibilitava o acesso pelo norte-, tinha o lado oeste protegido pelo feroz rio Tiró ¹, e o restante do perímetro contornado por uma sólida muralha, desprovida de torres, mas adornada de arqueiros, dia e noite, em toda a sua extensão, desenhando ela mesma um arco que ia da margem leste do ria até o sopé da montanha.
Aproximando-se do único portão de acesso existente em toda a muralha, embora tenha de longe observado que muitos viajantes, trabalhadores e mercadores entravam e saíam livremente, foi barrado antes mesmo que seu pé tocasse a área de terra batida que corresponderia à soleira do portão. Cinco homens fortes agarravam suas lanças de bronze com tensão equivalente à que apresentariam se fossem sozinhos enfrentar o exército imperial. Seu semblante era uma mistura de raiva, medo e suor. Um sexto homem, igualmente tenso, mas extremamente controlado avançou desarmado e proclamou:
- Por decreto de Hecatoma, senhor de Navarjari e filho do Tiró, aquele conhecido como “O Sábio” não poderá cruzar este portão. A desobediência a este comando será considerada uma ofensa direta ao regente ² e a punição será a “morte pelo fogo” ³.
- Eu já cruzei este portão, portanto, leve-me agora à praça.
Aquele que liderava os guardas vacilou. Com voz confusa tentou argumentar:
- Isto não faz sentido algum. Este é o único acesso à cidade e sei que você jamais cruzou este portão. As instruções são claras e nenhum membro da guarda teria desobedecido.
- Jovem, olhe para o meu corpo e diga o que vê.
- Eu vejo um homem velho e cansado.
- Se eu me lançar sobre estes homens, quantos calcula que eu serei capaz de ferir?
- Meu senhor, ainda que se lançasse sobre um trabalhador sozinho e desarmado, sua idade o impediria de fazer qualquer coisa contra ele. Um único movimento contra estes homens, treinados a vida toda para todo o tipo de batalha, com certeza o faria estar diante de Erebathor antes que pudesse dar o segundo passo. Jamais os tocaria.
- Então me diga, meu jovem: O que Hecatoma, senhor de Navarjari e filho do Tiró, tanto teme?
- O regente de Navarjari nada teme.
- Então o que fazem aí, entre mim e a cidade?
- Este é o decreto.
- Você mesmo disse que sou velho e fraco, incapaz de ferir até mesmo um simples andarilho, muito menos um soldado e jamais seu regente. Ainda assim ele teme, mas não meu corpo, mas meu espírito. Ele teme meu nome e minhas palavras, não obstante, eu declaro que meu nome já entrou em sua cidade, tendo sido pronunciado até pelos lábios do regente, e minha palavra percorre os corações de cada habitante, além de rondar os pesadelos do seu senhor. Tudo de mim que ele poderia temer um dia ter dentre da cidade já cruzou este portão há muito tempo, portanto, leve-me agora à praça.
Notas:
¹ Tiró = Ruidoso
² A tradição dizia que todas as terras do continente eram propriedades da família imperial, assim, cada autoridade local era reconhecida como um regente.

³ Embora aplicassem o termo “fogo”, na verdade este tipo de execução consistia em amarrar o condenado em praça pública, exposto ao sol até que morresse de desidratação. Para eles esta era a maior vergonha à qual alguém poderia ser exposto, pois era como ser morto diretamente pela mão do deus Erebathor (divindade relacionada ao Sol)

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