Passara o tempo da submissão
e da solicitude; chegara a hora do Chacal morder. Mordeu a mão que o
alimentava. Não era um cão. Ignorava o conceito “lealdade”. Derrubou a
montanha. Mirou o Sábio. Vacilou. O instinto oportunista avaliava prós e contras.
Derrubar o Sábio renderia, sem dúvida, reconhecimento por parte de Hecatoma.
Por outro lado, poupá-lo seria positivo caso se instalasse a nova ordem que seu
alvo poderia trazer. O Chacal, naquele momento, era uma simples superfície, um
campo de batalha à disposição do duelo travado entre o Sábio e Hecatoma. Folha
ao sabor do vento. Retirou a tensão do arco. Baixou a flecha. Se foi a batalha
ou a guerra, não se podia saber; por ora vencia o Sábio.
O Chacal caminhou manso até
a nova mão da qual buscaria afago. Prostrou-se colocando arco e flecha aos pés
do Sábio. Não os quebro.
- Senhor! Reconheço que fui
um tolo ao oferecer-lhe hostilidade. Preenche o vazio de minha ignorância com
suas palavras e serei uma nova pessoa.
O Sábio suspirou,
notadamente desapontado.
- “Nada” e “Estupidez” não
se equivalem. Você não está vazio, meu jovem. Está repleto do veneno que engole
enquanto atrasa seu bote. Se prostra agora, mas deseja em seu íntimo
prostrar-me. Não posso ajudá-lo, a menos que seja capaz de cumprir uma missão.
- Pode falar meu senhor!
Estou pronto para provar que não carrego veneno, apenas boa vontade.
- Seus traços e pele
evidenciam que não é deste lugar. Viajou muito antes de chegar aqui?
- Sim, meu senhor! Conheço muitos
lugares, povos e línguas.
- Conhece o caminho até a
capital?
- Sim meu senhor!
- Eu enviei um servo até lá.
Ele viaja devagar, pois está a pé e carrega peso. Parte agora e alcance-o antes
de chegar à capital. Coloque-se como servo do meu servo, toma-lhe o peso e
acompanha-o ao seu destino. Depois volta aqui e será meu sucessor direto.
O Chacal não passou em seu
aposento nem para apanhar ração para a viagem. Partiu imediatamente. Nunca mais
foi visto em Navarjari, muito menos na Capital.
Anos depois, ao redor da
fogueira ao largo de alguma estrada, estavam reunidos o Sábio, Oteruihá, e
alguns outros que os seguiam. Oteruihá era alto e forte. Sua pele apresentava
traços claros de que um dia fora muito obeso. Conversavam casualmente e
caçoavam do dia em que Oteruihá havia desmaiado ao ser atingido
superficialmente por duas flechas.
- Você desabou como uma
montanha.
- Eu nunca havia me
assustado tanto na vida. O pavor subiu pelas minhas pernas e o mundo sumiu.
- Foi difícil demais
carregá-lo para um local onde pudessem cuidar de você, velho amigo.
- Foi difícil demais me
carregar pela vida até aquele dia. E o homem que me atingiu? Que rumo deve ter
seguido?
- A menos que a Sabedoria do
mundo tenha novos planos, acredito que nossa conexão espiritual com ele consumou
seu propósito naquele mesmo dia.
- Ele morreu?
- Gosto de imaginar o
seguinte: Aquele homem correu por algumas horas; caminhou por outras. Percebendo
que o caminho para a capital era repleto de pedestres caminhando vagarosamente
com grande fardo, cumpriu a missão dada por mim fazendo-se servo de cada um deles.
Percebeu que eu nunca tive um servo, mas continuo servindo aos outros mesmo
assim. Aquele homem que passou uma vida servindo quem pudesse alimentá-lo, devorando
quem não podia oferecer mais, percebeu-se servindo quem antes humilharia. Ofereceu
o que tinha gratuitamente; não esperou recompensa; reconhecia que não era
possível ao outro recompensar-lhe; mais que isto, despertou para a grande
riqueza de não precisar de recompensa. Tornou-se verdadeiramente humano.
Nota:
Leia também “Ser”
Humano! Mesmo? Que tal “Tornar-se”?
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