Em um tempo
inimaginavelmente anterior a “muito tempo atrás” nasceram os
primeiros deuses. Algum tempo antes de “muito tempo atrás” ¹ um
menino perguntou ao seu pai “Pai! Você é um tipo de deus?” ².
Aqui encontramos a história de um menino, seu pai e o nascimento de
todos os deuses:
Muito tempo atrás
existiu um grande sábio. Algum tempo antes de “muito tempo atrás”,
existiu um menino e seu coração estava inquieto:
- Pai, as outras crianças
riram de mim!
- Por que isto aconteceu,
meu pequeno?
- Elas disseram que eu
sou mentiroso. Que nem você nem os pais delas são deuses e que era
um pecado falar assim. Depois brigaram umas contras as outras, pois
cada família acreditava em um deus diferente. Uns diziam que Khan
era o único deus verdadeiro. Outros falavam de Shinai, e se
ajoelhavam no chão cava vez que pronunciavam seu nome. Outros ainda
falavam de Erebathor, e diziam que ele era o pai de todos os deuses.
- Meu pequeno, não se
entristeça com seus amigos, assim como eu não me entristeço com os
pais deles. Eles apenas ainda não compreendem aquilo que você está
começando a compreender.
- Pai, o que são os
deuses?
- Isto, meu pequeno, eu
não posso te dizer.
- Mas eu preciso saber!
- Eu não disse que não
posso te mostrar. Torna a me perguntar amanhã bem cedo. Agora vai e
avisa sua mãe que iremos passar alguns dias fora. Precisaremos de
comida e roupas de inverno.
O menino não podia
imaginar o que o pai pretendia com tudo aquilo, mas foi logo
conversar com a mãe. Na manhã seguinte o menino levantou muito cedo
e correu para o quarto do pai, o qual estava vazio. Indo à cozinha
encontrou um farto café da manhã esperando por ele, enquanto o pai
apanhava bolsas com a mãe e conversava em voz baixa. O menino comeu
enquanto aguardava a partida. Sentia que iriam para algum lugar
importante. Terminada a refeição, cada qual prendeu uma bolsa nas
costas, despediram-se da mãe e foram para fora. Antes de seguirem a
jornada, o pai pediu ao menino que buscasse um balde no galpão de
ferramentas. Depois disto começaram a longa caminhada. Andaram por
estradas de pedra, depois por estradas de pura terra. Alcançaram
estradas antigas, nas quais a vegetação já recuperava sua posição
original. Atravessaram uma área de vegetação mais densa, como um
bosque, na qual a estreita trilha era quase imperceptível. Depois de
quase uma hora enfrentando o penumbra, as raízes expostas e as
picadas de insetos, chegaram a uma área descampada. Uma pequena
praia frente a um imenso lago.
- Está com sede?
O menino foi até a água,
imóvel e cristalina, saciando toda a sede do corpo e recuperando
parte das energias. A visão do lugar era difícil de compreender. O
lago era muito grande, sendo quase impossível ver a margem oposta,
quase além da “curva do mundo”. À sua esquerda a praia seguia
em curva, sempre contornada pela mata densa e alta. À sua direita o
cenário era parecido, porém, marcado por uma imensa montanha, uma
descomunal porção de terra e rocha que tentava escapar da selva e
do mundo rumo ao céu. O corpo da montanha apresentava variações de
cinza e vermelho, mas o alto era perfeitamente branco. No mesmo local
eles se sentaram e comeram algo que não cozinharam. Uma espécie de
massa assada, tradicional naquela época pela durabilidade. Não era
algo saboroso, mas era o mais eficiente em relação ao transporte e
à nutrição. Descansaram por pouco mais de meia hora, retomando a
viagem em seguida. Agora caminhavam pela praia, seguindo pela direita
do ponto no qual saíram da mata. O menino se esforçava para
acompanhar o pai, mas frequentemente era carregado no colo. Em
qualquer um dos casos, o avanço era lento. O céu queimava em
vermelho e dourado quando o pai anunciou:
- Dormiremos aqui.
O menino notou que
estavam praticamente aos pés da montanha.
- Vamos subir?
- Sim, mas não hoje.
O pai examinou o céu, em
busca de algum sinal de possível chuva. Depois coletou galhos nos
arredores, tarefa difícil pois a maioria ainda estava verde ou
úmida. Organizou-os em duas pilhas, uma menor e outra maior, ateando
fogo à primeira.
- O fogo nos protegerá
do frio e dos animais. Não se preocupe. Conheço bem este lugar. Era
exatamente aqui que dormíamos, quando meu pai me trazia à montanha.
- Tudo bem. Vamos
encontrar algum deus lá em cima?
- Não exatamente. Mas só
lá eu poderei responder sua pergunta.
O pai ficou abraçado ao
menino, colocando-se entre ele e a mata. Assistia ao sono tranquilo
da criança, olhava para o céu e pensava em seu próprio pai. Vez ou
outra tomava alguns galhos da segunda pilha e os colocava sobre a
primeira, garantindo que o fogo não se extinguisse. Estava quase
adormecendo quando notou os primeiros sinais do amanhecer surgindo
por sobre as águas do lago. Acordou o menino de modo suave e deu-lhe
mais do assado para viagens. Comeu também um pouco e beberam a fria
e cristalina água do lado.
- Agora temos algo
importante a fazer.
O pai encheu o balde com
a água do lago.
- Não podemos derramar
nem beber esta água. Vamos usá-la lá em cima.
O menino observava e
seguia as orientações do pai. Começaram a caminhada montanha
acima. Para tanto, reentraram na mata que estava aos pés da
montanha, porém, em um ponto um pouco mais alto, a superfície
rochosa tornava quase impossível a presença de vegetação, o que
facilitava o avanço. Embora a montanha fosse muito alta, a subida
não era totalmente íngreme, assim, foram poucas as ocasiões nas
quais o menino precisou de ajuda. As primeiras horas foram penosas
pois ao cansaço da subida e ao calor do sol assomava-se a massa de
ar úmido e abafado que ascendia do lago. Pouco depois do meio dia
fizeram uma nova pausa para comer. O menino parecia exausto. A visão
do lago, tão distante, só ampliava a agonia do calor e da sede.
Comeram à seco. Não levaram qualquer outra água se não a do
balde, a qual deveria ser poupada. Levantaram e seguiram em silêncio.
O ambiente mudava progressivamente; foi do quente e abafado ao
fresco, com uma brisa que pouco a pouco convertia-se em forte vento.
Em certo momento tiveram que parar para agasalhar-se. Estava muito
frio, mas ainda não frio o suficiente. Seguiram por pelo menos mais
uma hora, até atingir a fascinante e gelada parte branca da
montanha. Os pés se enfiavam quase dez centímetros na neve,
encharcando os calçados feitos de couro de boi.
- Aqui está bom.
Disse o pai, enquanto
abria um buraco na neve grande o bastante para abarcar todo o balde.
Jogou um pouco de neve na água sem, contudo, enterrar o balde.
- Pai, o que estamos
fazendo?
- Gelo, meu filho. Aqui é
muito frio. Vamos esperar um pouco para ver o que acontece com a
água.
Não demorou muito para
que o conteúdo do balde tivesse se transformado em um sólido bloco
de gelo. O pai virou o balde, sacudiu com força e bateu em suas
laterais até que o gelo se desprendesse, pegou de uma das bolsas que
trazia um formão e um pequeno martelo e pôs-se a remover lascas do
bloco. Não ser um grande artista, além da pressa por não pretender
dormir naquele lugar, tornou quase impossível perceber que tentava
esculpir um rosto. Felizmente, a imaginação do menino complementava
a deficiência do pai.
- Estou vendo o nariz.
Estou vendo os olhos. Está muito bom, pai.
O pai ria quando o menino
falava. Depois colocou sua “obra” solenemente sobre uma pedra
exposta, se virou e apontou o distante e imenso lago.
- Você vê o lago?
- Sim!
- Eu não sei o que é
deus, meu pequeno. Eu não sei se esta palavra é adequada para
aquilo em que eu acredito. Eu acredito em algo imenso, móvel, vivo e
vivificante assim como aquele lago. Não existem palavras para
explicar o que eu creio, pois vai além de mim, de você, do lago,
desta montanha. Minha mente é pequena demais para compreendê-lo,
mesmo assim, eu não desisto. Outras pessoas fazem em seus corações
o que nós fizemos com a água do balde. Elas separam um pedaço da
“Vida do Mundo”, a congelam e lhe atribuem um rosto humano. Este
pedaço de vida, pequeno e estático, eles chamam de deus. Elas não
estão mentindo. Elas não estão enganadas. Apenas pegaram do todo o
fragmento que podiam compreender. Este “quase rosto” de gelo aí
na sua frente ainda possui em seu interior a água do lago. Ainda
participa da água do lago. Mas me diga, meu pequeno, se você já
conheceu o lago e já matou sua sede nele, por que ainda perde tempo
aqui, no frio, no morto, na promessa de morte, contemplando rostos
inventados por homens?
Como se toda a verdade
jorrasse de seu coração na forma de vida e promessa de vida, o
menino sorriu e em disparada começou a descer a montanha.
Nota:
² Cf. O
Sábio e os deuses
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