sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Conto - O nascimento dos deuses

Em um tempo inimaginavelmente anterior a “muito tempo atrás” nasceram os primeiros deuses. Algum tempo antes de “muito tempo atrás” ¹ um menino perguntou ao seu pai “Pai! Você é um tipo de deus?” ². Aqui encontramos a história de um menino, seu pai e o nascimento de todos os deuses:

Muito tempo atrás existiu um grande sábio. Algum tempo antes de “muito tempo atrás”, existiu um menino e seu coração estava inquieto:
- Pai, as outras crianças riram de mim!
- Por que isto aconteceu, meu pequeno?
- Elas disseram que eu sou mentiroso. Que nem você nem os pais delas são deuses e que era um pecado falar assim. Depois brigaram umas contras as outras, pois cada família acreditava em um deus diferente. Uns diziam que Khan era o único deus verdadeiro. Outros falavam de Shinai, e se ajoelhavam no chão cava vez que pronunciavam seu nome. Outros ainda falavam de Erebathor, e diziam que ele era o pai de todos os deuses.
- Meu pequeno, não se entristeça com seus amigos, assim como eu não me entristeço com os pais deles. Eles apenas ainda não compreendem aquilo que você está começando a compreender.
- Pai, o que são os deuses?
- Isto, meu pequeno, eu não posso te dizer.
- Mas eu preciso saber!
- Eu não disse que não posso te mostrar. Torna a me perguntar amanhã bem cedo. Agora vai e avisa sua mãe que iremos passar alguns dias fora. Precisaremos de comida e roupas de inverno.
O menino não podia imaginar o que o pai pretendia com tudo aquilo, mas foi logo conversar com a mãe. Na manhã seguinte o menino levantou muito cedo e correu para o quarto do pai, o qual estava vazio. Indo à cozinha encontrou um farto café da manhã esperando por ele, enquanto o pai apanhava bolsas com a mãe e conversava em voz baixa. O menino comeu enquanto aguardava a partida. Sentia que iriam para algum lugar importante. Terminada a refeição, cada qual prendeu uma bolsa nas costas, despediram-se da mãe e foram para fora. Antes de seguirem a jornada, o pai pediu ao menino que buscasse um balde no galpão de ferramentas. Depois disto começaram a longa caminhada. Andaram por estradas de pedra, depois por estradas de pura terra. Alcançaram estradas antigas, nas quais a vegetação já recuperava sua posição original. Atravessaram uma área de vegetação mais densa, como um bosque, na qual a estreita trilha era quase imperceptível. Depois de quase uma hora enfrentando o penumbra, as raízes expostas e as picadas de insetos, chegaram a uma área descampada. Uma pequena praia frente a um imenso lago.
- Está com sede?
O menino foi até a água, imóvel e cristalina, saciando toda a sede do corpo e recuperando parte das energias. A visão do lugar era difícil de compreender. O lago era muito grande, sendo quase impossível ver a margem oposta, quase além da “curva do mundo”. À sua esquerda a praia seguia em curva, sempre contornada pela mata densa e alta. À sua direita o cenário era parecido, porém, marcado por uma imensa montanha, uma descomunal porção de terra e rocha que tentava escapar da selva e do mundo rumo ao céu. O corpo da montanha apresentava variações de cinza e vermelho, mas o alto era perfeitamente branco. No mesmo local eles se sentaram e comeram algo que não cozinharam. Uma espécie de massa assada, tradicional naquela época pela durabilidade. Não era algo saboroso, mas era o mais eficiente em relação ao transporte e à nutrição. Descansaram por pouco mais de meia hora, retomando a viagem em seguida. Agora caminhavam pela praia, seguindo pela direita do ponto no qual saíram da mata. O menino se esforçava para acompanhar o pai, mas frequentemente era carregado no colo. Em qualquer um dos casos, o avanço era lento. O céu queimava em vermelho e dourado quando o pai anunciou:
- Dormiremos aqui.
O menino notou que estavam praticamente aos pés da montanha.
- Vamos subir?
- Sim, mas não hoje.
O pai examinou o céu, em busca de algum sinal de possível chuva. Depois coletou galhos nos arredores, tarefa difícil pois a maioria ainda estava verde ou úmida. Organizou-os em duas pilhas, uma menor e outra maior, ateando fogo à primeira.
- O fogo nos protegerá do frio e dos animais. Não se preocupe. Conheço bem este lugar. Era exatamente aqui que dormíamos, quando meu pai me trazia à montanha.
- Tudo bem. Vamos encontrar algum deus lá em cima?
- Não exatamente. Mas só lá eu poderei responder sua pergunta.
O pai ficou abraçado ao menino, colocando-se entre ele e a mata. Assistia ao sono tranquilo da criança, olhava para o céu e pensava em seu próprio pai. Vez ou outra tomava alguns galhos da segunda pilha e os colocava sobre a primeira, garantindo que o fogo não se extinguisse. Estava quase adormecendo quando notou os primeiros sinais do amanhecer surgindo por sobre as águas do lago. Acordou o menino de modo suave e deu-lhe mais do assado para viagens. Comeu também um pouco e beberam a fria e cristalina água do lado.
- Agora temos algo importante a fazer.
O pai encheu o balde com a água do lago.
- Não podemos derramar nem beber esta água. Vamos usá-la lá em cima.
O menino observava e seguia as orientações do pai. Começaram a caminhada montanha acima. Para tanto, reentraram na mata que estava aos pés da montanha, porém, em um ponto um pouco mais alto, a superfície rochosa tornava quase impossível a presença de vegetação, o que facilitava o avanço. Embora a montanha fosse muito alta, a subida não era totalmente íngreme, assim, foram poucas as ocasiões nas quais o menino precisou de ajuda. As primeiras horas foram penosas pois ao cansaço da subida e ao calor do sol assomava-se a massa de ar úmido e abafado que ascendia do lago. Pouco depois do meio dia fizeram uma nova pausa para comer. O menino parecia exausto. A visão do lago, tão distante, só ampliava a agonia do calor e da sede. Comeram à seco. Não levaram qualquer outra água se não a do balde, a qual deveria ser poupada. Levantaram e seguiram em silêncio. O ambiente mudava progressivamente; foi do quente e abafado ao fresco, com uma brisa que pouco a pouco convertia-se em forte vento. Em certo momento tiveram que parar para agasalhar-se. Estava muito frio, mas ainda não frio o suficiente. Seguiram por pelo menos mais uma hora, até atingir a fascinante e gelada parte branca da montanha. Os pés se enfiavam quase dez centímetros na neve, encharcando os calçados feitos de couro de boi.
- Aqui está bom.
Disse o pai, enquanto abria um buraco na neve grande o bastante para abarcar todo o balde. Jogou um pouco de neve na água sem, contudo, enterrar o balde.
- Pai, o que estamos fazendo?
- Gelo, meu filho. Aqui é muito frio. Vamos esperar um pouco para ver o que acontece com a água.
Não demorou muito para que o conteúdo do balde tivesse se transformado em um sólido bloco de gelo. O pai virou o balde, sacudiu com força e bateu em suas laterais até que o gelo se desprendesse, pegou de uma das bolsas que trazia um formão e um pequeno martelo e pôs-se a remover lascas do bloco. Não ser um grande artista, além da pressa por não pretender dormir naquele lugar, tornou quase impossível perceber que tentava esculpir um rosto. Felizmente, a imaginação do menino complementava a deficiência do pai.
- Estou vendo o nariz. Estou vendo os olhos. Está muito bom, pai.
O pai ria quando o menino falava. Depois colocou sua “obra” solenemente sobre uma pedra exposta, se virou e apontou o distante e imenso lago.
- Você vê o lago?
- Sim!
- Eu não sei o que é deus, meu pequeno. Eu não sei se esta palavra é adequada para aquilo em que eu acredito. Eu acredito em algo imenso, móvel, vivo e vivificante assim como aquele lago. Não existem palavras para explicar o que eu creio, pois vai além de mim, de você, do lago, desta montanha. Minha mente é pequena demais para compreendê-lo, mesmo assim, eu não desisto. Outras pessoas fazem em seus corações o que nós fizemos com a água do balde. Elas separam um pedaço da “Vida do Mundo”, a congelam e lhe atribuem um rosto humano. Este pedaço de vida, pequeno e estático, eles chamam de deus. Elas não estão mentindo. Elas não estão enganadas. Apenas pegaram do todo o fragmento que podiam compreender. Este “quase rosto” de gelo aí na sua frente ainda possui em seu interior a água do lago. Ainda participa da água do lago. Mas me diga, meu pequeno, se você já conheceu o lago e já matou sua sede nele, por que ainda perde tempo aqui, no frio, no morto, na promessa de morte, contemplando rostos inventados por homens?
Como se toda a verdade jorrasse de seu coração na forma de vida e promessa de vida, o menino sorriu e em disparada começou a descer a montanha.

Nota:
¹ Leia também O Sábio e a Chuva

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